sobre as dores as delícias vividas no apartamento 62 do edifício Magnólia

Eu gosto é de encostar os sorrisos.
Cócega
com as pontas dos dedos.
Pé com pé fazendo carinho,
esquentando.
Deitar ao contrário na cama.
O pensamento,
que vaza em sussurros.
Cigarrinho dividido,
luzes que passam no teto
e abraço na cintura à janela
da Consolação.

sobre os vestígios

Meu pai é palhaço
e gosta de filme pornô.
Um vez encontrei embaixo da cama
os vestígios:
encaracolados fios de plástico
cor de fogo.
Nunca se falou sobre esses ofícios.
Era quase sempre rude e sério
como seus ternos azul-marinho.
O tom de voz elevado:
brigava. Batia.
Nos obedecíamos sempre: eu, porque tinha medo.
Mas sabia:
as meias de bolinhas amarelas
escondidas no fundo da gaveta.
Os sons que vinham do quarto
quando eu não conseguia dormir.
O babado roxo escapando
do bolso da calça velha
esquecida no varal.
Os vestígios,
(muito mais do que o terno sério azul)
esses,
eram meu pai.

sobre silêncio

Nana, nana, nana meu neném
enquanto a dona Cuca não vem
o bicho papão do telhado
vem um dia pra pegá-lo
o boi, boi, boi
de cara preta
já tá na espreita
só esperando
você
cres
cer.

sobre neblinas

Tudo o que via eram grandes borrões de cor. Esmaecidos pela fumaça cinza da cidade, mas com uma enorme variedade de tons. Rostos não reconhecia. Placas, não podia seguir. Fora uma escolha irredutível abandonar a máscara que eram os óculos. Andava pela São Paulo quase cega, e cada objeto era novo sob sua vista embaçada: nas tardes quentes, quando saia com um de seus vestidos curtos e leves de sol, imaginava todos os olhos e sorrisos voltados para ela. Na viagem diária de ônibus sentava à janela para ver o centro: lá fora passavam os arranha-céus estendendo seus dedos de antenas para encostar-se às nuvens. Os carros com seus rostos cômicos, os olhos de lanterna. Os bueiros, grandes caixas de segredos. Um homem dormia no chão com os cabelos adornados por flores. Uma revoada de pombas! Chuva de confetes gris. As árvores, chapéus de gigantes. Um cão vadio abriu um sorriso com a língua rosada de fora. O chão habitado pela mais diversa variedade de animais coloridos de lixo.

Os sons da cidade também eram outros com o abandono das lentes: pássaros, buzinas, latidos e vozes – tudo compunha a sinfonia. Prestava atenção na conversa das pessoas que viajavam ao lado. Uma freada brusca no ônibus era uma intervenção – momento tenso no diálogo. A campainha de sinal para descer era cômica. O ranger da catraca. As portas se abrindo e fechando. Uma batida! O grande clímax.

Saltava do ônibus na Avenida Paulista. Os homens de terno pinguins de ombros largos, transpirando com o calor. As mulheres artistas de circo com as maquiagens exageradas, desengonçadas sobre os saltos finos. Motoboys passavam correndo: crianças com suas bolas de ar de capacetes. De vez em quando cruzava ali com os olhos dele: sempre aparecia no rosto de um garoto magro de cabelos loiros despenteados. E sua mãe era cada senhora gorda com lenço na cabeça. Ainda que não fosse a sua, valia sentir por um instante o coração acelerado de espanto e alegria. (Assim quase não sentia saudade).

O pôr-do-sol era o maior dos espetáculos: todos os borrões ganhavam um laranja-dourado, cor preferida, o sabor que vinha com ela. O ar pesava na medida certa.

Mas é claro que havia também os dias cinzas, como em todo o mundo. Era quando andava pelas ruas com as roupas pesadas e os olhos de lágrimas inundando as ruas da cidade. Os sons abafavam. Os borrões perdiam a variedade de tons. Nesses dias não havia pôr-do-sol. Mas nem isso a fazia triste: com a cabeça baixa, a caminhada sobre o duro e escuro asfalto era então um voo sobre um bonito chão de neblina.

sobre uma carta de despedida

Quando acordei daquela noite longa, no sofá duro da Consolação, você ainda dormia ao meu lado, com a boca aberta. Chorei: esse não é o meu mundo – expliquei, quando você acordou. – Também não é o meu, meu anjo – com essa sua mania estúpida de me chamar de anjo. Só reforçava a minha crença de que você era o próprio demônio.

Levantei e tentei reorganizar a casa da devassa na noite anterior: foram pro lixo todos os retalhos das fantasias, agora ao mesmo nível da sujeira. O corpo tremia, cansado, sobrevivente do desgaste do álcool. Nojo. Minha tatuagem ainda no seu pescoço. E fome. Desci os oito andares no elevador antigo, sozinha, me esquivando do grande espelho. A Consolação já em seu ritmo: ensurdecedor. O pão francês comprado com as moedas contadas. Voltei e sentei no chão, ao pé do sofá, olhando por alguns minutos você dormindo com a boca aberta, naquele sono profundo que só as crianças muito novas ainda podem ter. Peguei meu caderno azul na bolsa: queria que a escrita organizasse algo, mas não havia mais o que ser organizado. Eu sentia a confusão. Não tínhamos mais entrelinhas. Foi direto, em letras caprichadas: A vida tem que seguir, mesmo que de coração apertado.

Na época eu lia vorazmente um livro no qual eu reconhecia cada um dos nossos atos nos personagens protagonistas, que eram amantes. Gostaria de poder dizer aqui que era a obra-prima de um grande expoente da literatura, mas não passava de um romance barato de um autor desconhecido. Era bem diferente dos grandes livros que eu costumava te dar de presente, e que você nunca leu, não passando sequer das dedicatórias poéticas e patéticas que eu fazia nas contracapas. Apesar de eu adorar o texto dos livros que eu te dava, eram só os romances baratos que realmente me prendiam. É isso que eu sempre fui: uma grande farsa de inteligência e maturidade. Peguei o livro e li as últimas linhas, mesmo que ainda faltassem mais de cem páginas para eu chegar ao final (atitude que me parecia um grande crime). Queria saber qual seria o nosso fim. Ali eu li o que aconteceria comigo.

Lembrei de um sonho recorrente, que eu tinha desde sempre: mergulhada na água de uma piscina muito, muito azul, me debato olhando para a luz do sol lá em cima - tão longe - na tentativa frustrada de conseguir respirar. Entro em desespero extremo. De tanto me debater, me canso. Sossego. E vem aquela sensação sublime: a paz absoluta de quando desisto. Agora vou morrer e, finalmente, descobrir o que acontece depois – penso, tranquila. Fecho os olhos no sonho e os abro na vida real. Aquele sentimento de paz ainda pulsando por mais alguns segundos. Os últimos.

Naquela noite você me mostrou um mundo de gente solitária. Eu sempre fui triste, mas era livre. Você me aprisionou numa solidão sem fim, que veio junto com o medo de morrer.

Arranquei a última página do livro e deixei cuidadosamente em cima da mesa, apoiada de forma que você pudesse avistá-la ainda deitado, quando acordasse. Era a minha carta de despedida.

Voltei pra casa em passos lentos. As mãos no bolso, a cabeça longe. Durante o curto trajeto entre a Consolação e o Paraíso, pensei em quando aquilo teve início: o encaixe. Os sorrisos sussurrados no ouvido. A vontade de saber mais, sabendo que não era necessário saber mais nada. O toque preciso, a vontade cansada de amar. A dor magnífica de ser quem éramos. A vertigem, o sono, o carinho repartido. A cumplicidade inabalável de estranhos. Beijo leve. O corajoso encontro dos olhos. Nossa transparência tímida, as palavras sutis das mãos dadas. Beleza imperfeita dos corpos na luz baixa. A grande Consolação em paz inquietante: alegria do encontro. O segredo despejado aos poucos no encontro da língua. O vazio preenchido no silêncio. Pensamento. A graça dos movimentos. O peito saciado de desconfortos. A descoberta de algo que era nosso. Denso, terno, intenso, secreto: só nosso.

Cheguei em casa com a decisão. Estava, depois de muito tempo, completamente sozinha.

Livre.

Tinha chegado a hora. Era preciso que você morresse, para que eu pudesse viver. Mas você só existia era dentro de mim. Sem o filtro que eu fazia, você não passava de uma existência patética. Você era assim: encantador, nocivo, intrigante, – só dentro de mim.

Vinte e sete comprimidos no criado-mudo, organizados gentilmente por ordem de tamanho e cor. Pensei pela última vez em meu pai e na solidão sobre a qual ele escrevia, que de repente era exatamente igual a minha. Tomei um a um, respirando fundo entre as doses, fazendo do ato um ritual. Imaginava cada grama de comprimido sendo absorvido, cada grama. Cada grama que entrava na corrente sanguínea, era um pedaço da minha prisão que desmoronava. Eu não poderia escolher outra morte para eu e você: teria que ser assim, porque era a liberdade: lenta, leve, tranqüila.

Sozinha.

Deitada, olhando para o lustre no teto, reparei na luz acesa, que parecia tão longe vista por debaixo d’agua: meus olhos marejados de lágrimas. Paro de me debater. Sossego. E vem aquela sensação sublime: a paz absoluta de quando desisto.

[tudo] sobre nós

Este grande vinco que corta a minha mão da parte superior do polegar até a extremidade do pulso, é a evidência de que você viria. Foi o que disse mestre Renata do cartaz - leitura de mãos e amarração para o amor - apenas 150 reais e pagamento só depois do resultado alcançado. Muitas alegrias e tristezas, ela me disse. Daqui dois anos ele virá.
Queria agora ter cortado minha mão direita, na esperança desesperada de te tirar do meu destino.

sobre uma revelação

E eis que então, no meio de uma tarde amena, vem até mim – sutil e naturalmente – o sentimento que por tantos dias persegui de forma feroz:

estou livre de novo.

sobre a noite passada

(para Luciano)

A noite quente.
Cervejas, bitucas, os livros, os filmes,
e a indizível matéria da dor.
A reflexão sobre o limite.
A dor e o alívio de descobrir do que somos feitos
A verdade que machuca, a mentira que conforta.
O ódio - o amor e os desamores.
Riso e choro: a grande contradição que somos nós.
E ao fim da noite,
a certeza – absoluta – de que nunca se pôde viver só.

sobre estar vazia

Queria escrever uma carta de despedida que fosse linda.
Durante dias ensaiei as palavras, estudei as entrelinhas,
amadureci a dor pra encontrar a poesia.
Nenhuma linha...
Recorri ao fundo da gaveta, retalhei textos antigos, na esperança desesperada de resgatar a harmonia.

Apaguei, joguei no lixo: rimas pobres, disritmia.

Como você me fez perder a habilidade de fazer, essa que era a única coisa que eu sabia?