sobre uma carta de despedida

Quando acordei daquela noite longa, no sofá duro da Consolação, você ainda dormia ao meu lado, com a boca aberta. Chorei: esse não é o meu mundo – expliquei, quando você acordou. – Também não é o meu, meu anjo – com essa sua mania estúpida de me chamar de anjo. Só reforçava a minha crença de que você era o próprio demônio.

Levantei e tentei reorganizar a casa da devassa na noite anterior: foram pro lixo todos os retalhos das fantasias, agora ao mesmo nível da sujeira. O corpo tremia, cansado, sobrevivente do desgaste do álcool. Nojo. Minha tatuagem ainda no seu pescoço. E fome. Desci os oito andares no elevador antigo, sozinha, me esquivando do grande espelho. A Consolação já em seu ritmo: ensurdecedor. O pão francês comprado com as moedas contadas. Voltei e sentei no chão, ao pé do sofá, olhando por alguns minutos você dormindo com a boca aberta, naquele sono profundo que só as crianças muito novas ainda podem ter. Peguei meu caderno azul na bolsa: queria que a escrita organizasse algo, mas não havia mais o que ser organizado. Eu sentia a confusão. Não tínhamos mais entrelinhas. Foi direto, em letras caprichadas: A vida tem que seguir, mesmo que de coração apertado.

Na época eu lia vorazmente um livro no qual eu reconhecia cada um dos nossos atos nos personagens protagonistas, que eram amantes. Gostaria de poder dizer aqui que era a obra-prima de um grande expoente da literatura, mas não passava de um romance barato de um autor desconhecido. Era bem diferente dos grandes livros que eu costumava te dar de presente, e que você nunca leu, não passando sequer das dedicatórias poéticas e patéticas que eu fazia nas contracapas. Apesar de eu adorar o texto dos livros que eu te dava, eram só os romances baratos que realmente me prendiam. É isso que eu sempre fui: uma grande farsa de inteligência e maturidade. Peguei o livro e li as últimas linhas, mesmo que ainda faltassem mais de cem páginas para eu chegar ao final (atitude que me parecia um grande crime). Queria saber qual seria o nosso fim. Ali eu li o que aconteceria comigo.

Lembrei de um sonho recorrente, que eu tinha desde sempre: mergulhada na água de uma piscina muito, muito azul, me debato olhando para a luz do sol lá em cima - tão longe - na tentativa frustrada de conseguir respirar. Entro em desespero extremo. De tanto me debater, me canso. Sossego. E vem aquela sensação sublime: a paz absoluta de quando desisto. Agora vou morrer e, finalmente, descobrir o que acontece depois – penso, tranquila. Fecho os olhos no sonho e os abro na vida real. Aquele sentimento de paz ainda pulsando por mais alguns segundos. Os últimos.

Naquela noite você me mostrou um mundo de gente solitária. Eu sempre fui triste, mas era livre. Você me aprisionou numa solidão sem fim, que veio junto com o medo de morrer.

Arranquei a última página do livro e deixei cuidadosamente em cima da mesa, apoiada de forma que você pudesse avistá-la ainda deitado, quando acordasse. Era a minha carta de despedida.

Voltei pra casa em passos lentos. As mãos no bolso, a cabeça longe. Durante o curto trajeto entre a Consolação e o Paraíso, pensei em quando aquilo teve início: o encaixe. Os sorrisos sussurrados no ouvido. A vontade de saber mais, sabendo que não era necessário saber mais nada. O toque preciso, a vontade cansada de amar. A dor magnífica de ser quem éramos. A vertigem, o sono, o carinho repartido. A cumplicidade inabalável de estranhos. Beijo leve. O corajoso encontro dos olhos. Nossa transparência tímida, as palavras sutis das mãos dadas. Beleza imperfeita dos corpos na luz baixa. A grande Consolação em paz inquietante: alegria do encontro. O segredo despejado aos poucos no encontro da língua. O vazio preenchido no silêncio. Pensamento. A graça dos movimentos. O peito saciado de desconfortos. A descoberta de algo que era nosso. Denso, terno, intenso, secreto: só nosso.

Cheguei em casa com a decisão. Estava, depois de muito tempo, completamente sozinha.

Livre.

Tinha chegado a hora. Era preciso que você morresse, para que eu pudesse viver. Mas você só existia era dentro de mim. Sem o filtro que eu fazia, você não passava de uma existência patética. Você era assim: encantador, nocivo, intrigante, – só dentro de mim.

Vinte e sete comprimidos no criado-mudo, organizados gentilmente por ordem de tamanho e cor. Pensei pela última vez em meu pai e na solidão sobre a qual ele escrevia, que de repente era exatamente igual a minha. Tomei um a um, respirando fundo entre as doses, fazendo do ato um ritual. Imaginava cada grama de comprimido sendo absorvido, cada grama. Cada grama que entrava na corrente sanguínea, era um pedaço da minha prisão que desmoronava. Eu não poderia escolher outra morte para eu e você: teria que ser assim, porque era a liberdade: lenta, leve, tranqüila.

Sozinha.

Deitada, olhando para o lustre no teto, reparei na luz acesa, que parecia tão longe vista por debaixo d’agua: meus olhos marejados de lágrimas. Paro de me debater. Sossego. E vem aquela sensação sublime: a paz absoluta de quando desisto.